sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Recordações do Escrivão Isaias Caminha (Lima Barreto)


Primeiras Palavras:

OQue bom que estamos solidificando nossa relação!

Faltam poucos dias para o vestibular do UESC e sei que para alguns é muito pouco tempo ... fica aquela sensação de que ainda falta estudar muita coisa... Relaxe e continue fazendo o que você pode, buscando ultrapassar um pouco os seus limites.

Fernando Pessoa disse: A minha parte é feita, o por fazer-se é só com Deus. Então faça a sua parte e deixe o resto com quem pode mudar destinos.

Tem sido uma honra compartilhar esses preciosos estudos com você!

Mara Rute Lima

A história

Esse livro pertence ao gênero romance tradicional - único no processo da UESC. A trama é simples, trata-se de um jovem do interior que sonha em ser doutor ( como forma de melhorar de vida e limpar-se da condição de “azeitonado”) e para isso vai para o Rio de Janeiro. Lá, presencia a dura realidade de uma cidade preconceituosa e cruel. Peregrina durante muito tempo passando até necessidade. Consegue um emprego no jornal, mas sua melhoria de vida não se relaciona ao estudo e sim as relações que estabelece e a segredos que passa a guardar. Termina a história percebendo que a cidade lhe corrompeu e, sobretudo que os valores vigentes não são os de estudo e mérito.

1. A abertura do livro é feita por Isaias que se lembra da educação que recebeu na infância e já claramente estabelece uma distinção entre a relação com o pai – padre instruído e sua mãe, leiga. De que maneira se percebe no livro a influência do pai como maior que a mãe?

Leia o trecho:

Passava por um largo descampado e olhei o céu. Pardas nuvens cinzentas galopavam, e, ao longe, uma pequena mancha mais escura parecia correr engastada nelas. A mancha aproximava-se e, pouco a pouco, via-a subdividir-se, multiplicar-se; por fim, um bando de patos negros passou por sobre a minha cabeça, bifurcado em dois ramos, divergentes de um pato que voava na frente, a formar um V. Era a inicial de “Vai”. Tomei isso como sinal animador, como bom augúrio do meu propósito audacioso. No domingo, de manhã, disse de um só jato à minha mãe:

— Amanhã, mamãe, vou para o Rio.

2. Com base no trecho acima comente sobre a visão de Isaias e a realidade encontrada no Rio de Janeiro.

E seu tio Valentim – quase um pai, conseguiu para Isaias o que considerava elemento fundamental para a vida no Rio: uma carta do coronel Belmiro para o deputado Castro que ele ajudou a eleger. Na carta pedia para que o deputado providenciasse um trabalho para Isaias. Aqui o narrador deixa antever a sensação de poder do coronel. Porém, quando Isaias chega ao Rio Isaias percebe que a carta não tem validade alguma e que ele não é sequer bem recebido pelo deputado. Esse inclusive lhe manda voltar num dia em que sabe que não vai estar. Logo, as impressões primeiras sobre sua vida no Rio se desfazem e ele vivencia um Rio de Janeiro cruel e não acolhedor como esperava que fosse. O leitor também percebe um coronel que já não tem poder na sociedade do século XX.

3. O livro aborda um tema constante na obra de Lima Barreto: o do preconceito racial. Assinale a alternativa que não contenha um trecho que permita antever isso:

a) “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor...”

b)” Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano!...”

c) “ Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim, as lágrimas me vieram aos olhos.”

d) “ Entretanto, isso tudo é uma questão de semântica: amanhã, dentro de um século, não terá mais significação injuriosa.”

e) “ se me esforço em fazê-lo literário é para que possa ser lido, pois quero falar das minhas dores e dos meus sofrimentos ao espírito geral eno seu interesse, com a linguagem acessível a ele.

“O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café e bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como se demorassem em trazer-me o troco reclamei: "Oh! fez o caixeiro indignado e em tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo!" Ao mesmo tempo, a meu lado, um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação. ... Mesmo de rosto, se bem que os meus traços não fossem extraordinariamente regulares, eu não era hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada”.

4. Machado de Assis em suas obras e também em Papéis Avulsos ressalta a questão do título como importante na sociedade. Explique como tal questão aparece nas obras de Machado e de Lima Barreto respectivamente.

“ Escrevendo estas linhas, com que saudades me não recordo desse heróico anseio dos meus dezoito anos esmagados e pisados! Hoje... É noite.

Descanso a pena. No interior da casa, minha mulher acalenta meu filho único. A sua cantiga chega-me aos ouvidos cheia de um grande acento de resignação. Levanto-me, vou à varanda. A lua, no crescente, banha-me com meiguice, a mim e a minha humilde casa roceira. Por momentos deixo -me ficar sem pensamentos, envolto na fria luz da lua, e embalado pela ingênua cantilena de minha mulher. Correm alguns instantes; ela cessa de cantar e o brilho do luar é empanado por uma nuvem passageira. Volto às minhas reminiscências: vejo o bonde, a gente que o enchia, os sofrimentos que me agitavam, a rua transitada...

Os meus desejos de vingança fazem-me agora sorrir e não sei por que, do fundo da minha memória, com essas recordações todas, chega-me também a imagem de uma pesada carroça, com um grande lajedo suspenso por fortes correntes de ferro, vagarosamente arrastada sobre o calçamento de granito, por uma junta de bois enormes, que o carreteiro fazia andar com gritos e ferroadas desapiedadas...”

5. A partir do trecho acima e considerando a totalidade da obra comente sobre as características do narrador nessa obra.

6. Quando Isaias vai procurar o deputado Castro na câmara o narrador revela a admiração que esse tem pelos legisladores em seguida mostra a grande decepção que terá depois da visita a que se deve sua decepção?

7. Assinale a alternativa que não contenha um trecho em que haja a presença da metalinguagem:

a) “Penso — não sei por quê — que é este meu livro que me está fazendo mal... E quem sabe se excitar recordações de sofrimentos, avivar as imagens de que nasceram não é fazer com que, obscura e confusamente, me venham as sensações dolorosas já semimortas?”

b) “Talvez mesmo seja angústia de escritor, porque vivo cheio de dúvidas, e hesito de dia para dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu valor literário que me preocupa; é a sua utilidade para o fim que almejo”

c)“ Se me esforço por fazê-lo literário é para que ele possa ser lido, pois quero falar das minhas dores e dos meus sofrimentos ao espírito geral e no seu interesse, com a linguagem acessível a ele.”

d) É este o meu propósito, o meu único propósito (...)Confesso que os leio, que os estudo, que procuro descobrir nos grandes romancistas o segredo de fazer. Mas, não é a ambição literária que me move o procurar esse dom misterioso para animar e fazer viver estas pálidas Recordações.

e) Com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo; a não se encherem de hostilidade e má vontade quando encontrarem na vida um rapaz como eu e com os desejos que tinha há dez anos passados. Tento mostrar que são legítimos e, se não merecedores de apoio, pelo menos dignos de indiferença”.

Sobre ele mesmo e sua personalidade ele vai propondo ao leitor:

“O caminho na vida parecia-me fechado completamente, por mãos mais fortes que as dos homens. Não eram eles que não me queriam deixar passar, era o meu sangue covarde, era a minha doçura, eram os defeitos de meu caráter que não sabiam abrir um. Eu mesmo amontoava obstáculos à minha carreira; não eram eles...

Não seria tolice, pusilanimidade escondida fazer repousar a minha felicidade na presteza com que um qualquer deputado atendesse um pedido de emprego? Era possível tê-los sempre à mão para os dar ao primeiro que aparecesse?

As condições de minha felicidade não deviam repousar senão em mim mesmo — conclui... Mas não era só isso que eu via. O que me fazia combalido, o que me desanimava eram as malhas de desdém, de escárnio, de condenação em que me sentia preso.”

8. A partir do trecho acima trace a personalidade de Isaias Caminha:

Um tema importante no livro, senão o mais importante é o tema do jornalismo. Como ele é produzido, a mediocridade que o cerca, o poder da mídia sobre a sociedade, a defesa de interesses pessoais. Segue em seguida algumas das importantes reflexões que o livro faz a esse respeito:

“Pagou sim, apressou-se em responder Plínio de Andrade; mas um dos empregados da livraria disse-lhe insolentemente: Você paga este sobre a Grécia, que queria levar agora e também o romance francês que levou anteontem... A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba-Roxa ressuscitasse, agora com os nossos velozes cruzadores e formidáveis couraçados, só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista. Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova... E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação... Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas... Só se é geômetra com o seu placet, só se é calista com a sua confirmação e se o sol nasce é porque eles afirmam tal coisa... E como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! Fazem de imbecis gênios, de gênios imb ecis; trabalham para a seleção das mediocridades, de modo que...”

—Oh! Caminha! Onde tens andado? Que tens, rapaz?

Era Gregoróvitch Rostóloff. Falei, contei-lhe a vida. Os seus olhos de conta mais se arredondaram de

desconfiança; mas, depois de duas ou três perguntas, de examinar-se o vestuário e algumas palavras de consolo, ao

despedir-se, assim me convidou:

—Aparece-me logo, à noitinha, na redação do O Globo.

9. Qual a importância dessa cena para a vida de Isaias Caminha?

“De tal maneira é forte o poder de nos iludirmos, que um ano depois cheguei a ter até orgulho da minha posição. Senti-me muito mais que um continuo qualquer, mesmo mais que um continuo de ministro. As conversas da redação tinham-me dado a convicção de que o doutor Loberant era o homem mais poderoso do Brasil; fazia e desfazia ministros, demitia diretores, julgava juizes e o presidente, logo ao amanhecer, lia o seu jornal, para saber se tal ou qual ato seu tinha tido o placet desejado do doutor Ricardo. Participar de uma redação de jornal era algo extraordinário, superior, acima das forças comuns dos mortais; e eu tive a confirmação disso quando, certa vez, na casa de cômodos em que morava, dizendo-o ao encarregado que trabalhava na redação do O Globo, vi o pobre homem esbugalhar muito os olhos, olhar-me de alto a baixo, tomar-se de grande espanto como se estivesse diante de um ente extraordinário. As raparigas que residiam junto a mim, lavadeiras e costureiras, criadas de servir, apelidaram-me “o jornalista”, e mesmo quando vieram a ter exato conhecimento da minha real situação no jornal, continuei a ser por esse apelido conhecido, respeitado e debochado”.

Depois revela como eram as relações no jornal ...

“Quando se tratava de per si com qualquer dos empregados do jornal, ficava-se admirado que a folha se imprimisse e se escrevesse diariamente. Floc tinha em pouca conta Losque: um bufão, dizia ele; Bandeira desprezava Floc: um eunuco; e todos como que pareciam querer entredevorar-se até aos ossos. Entretanto, quando um fazia anos, a seção competente gemia e os adjetivos mais ternos e mais camaradários não eram poupados. De seção para seção, a guerra era terrível. A revisão dizia que a redação era analfabeta; a tipografia acusava ambas de incompetentes; e até a impressão que não lia nem via originais tinha uma opinião desfavorável sobre todas três.

A redação não perdoava a menor falha da revisão. Às vezes, eram os originais defeituosos; em outras, havia descuido ou a pretensão fazia emendar o que estava certo; mas sempre as reclamações choviam por parte dos redatores, dos colaboradores e dos repórteres.

O livro trata de uma questão interessante que permeava o contexto em que foi produzida a obra: a reforma do Rio de Janeiro para não perder da argentina - tida como européia. Sem planejamento resolvemos reformar o Rio e, para ilustrar essa ação meio louca ele conta do projeto dos sapatos obrigatórios .

Questão

“ O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. São independentes; não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão, inteligência, e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o Governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo. Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde.

No jornal exultava-se. As vitórias do povo tinham hinos de vitórias da pátria. Exagerava-se, mentia-se, para se exaltar a população. Em tal lugar, a polícia foi repelida; em tal outro, recusou-se a atirar sobre o povo. Eu não fui para casa, dormi pelos cantos da redação e assisti à tiragem do jornal: tinha aumentado cinco mil exemplares. Parecia que a multidão o procurava como estimulante para a sua atitude belicosa. O serviço normal da folha fazia-se com atividade. Os repórteres iam aos lugares perigosos, aos pontos mais castigados pela polícia, corriam a cidade em tílburis. Nem os revisores nem os seus suplentes faltavam à chamada; outro tanto sucedia com os tipógrafos e os outros operários.

Toda essa abnegação era para garantir os seus mesquinhos empregos. Um pobre tipógrafo, que morava para a Saúde, onde o transito se fazia com os maiores perigos, ficou todos os três dias no jornal. Temia ser morto por uma bala pedida. Houvera muitas mortes assim, mas os jornais não as noticiavam. Todos eles procuravam lisonjear a multidão, mantê-la naquelas refregas sangrentas, que lhes aumentava a venda. Não queriam abater a coragem do povo com a imagem aterradora da morte. A polícia atirava e não matava; os populares atiravam e não matavam. Parecia um torneio... Entretanto eu vi morrer quase em frente ao jornal um popular. Era de tarde. O pequeno italiano, na esquina, apregoava os jornais da tarde: Notícia! Tribuna! Despacho!” ( Memórias do Escrivão Isaias Caminha)

Na canção O Salto o Rappa diz: “Aos jornais eu deixo meu sangue como capital e às famílias um sinal”

10. É possível estabelecer uma clara relação entre o trecho acima e a canção? Justifique.

A construção de um herói

O homem que acaba de morrer não era um homem vulgar. No domínio de sua difícil arte, era uma notabilidade respeitada. Para nós, era muito mais: era um amigo, um dedicado e leal amigo a quem muito devíamos e prezávamos. Todos os que mourejam nesta tenda de trabalho, certamente não hão de esquecê-lo e não há nenhum que não tenha recebido um favor, uma alegria, uma satisfação de suas mãos.

O público que nos lê, não sabe o quanto esta vida de jornalista é esgotante e ingrata; não sabe que soma de energia ela exige e como nos tira os melhores momentos de ócio e os melhores minutos de prazer. Vivemos por assim dizer para os outros; e quem vive para os outros, é claro que muito pouco pode viver para si.

Charles de Foustangel atravessava a nossa vida como um anjo protetor; dele, tirávamos alguns raros instantes de alegria no meio das agruras que nos cercam. Era de ver como ele sabia desenvolver um menu, como imaginava um ‘quitute’ inédito, um prato saboroso, que verve especial punha nos nomes com que os batizava e que raros gozos eles traziam aos nossos paladares fatigados por esses hotéis detestáveis que nos impingem solas duríssimas por bifes de grelha. Quantas ocasiões não fomos nós de mau humor para a mesa de jantar, enervados, sem vontade de trabalhar, com a encomenda do artigo, da reportagem, da crônica para o dia seguinte e sem coragem para fazê-los, e nos levantávamos, graças à brandura do seu tempero e a eurritmia dos seus molhos, satisfeitos, solertes, cheios de novas energias!

......

Todos os jornais se referiram ao inditoso Charles de Foustangel e alguns abriram subscrições para socorrer a família do cozinheiro. Fora do convívio jornalístico, as manifestações de pesar não foram menores: o Centro dos Estudantes passou um telegrama de pêsames ao presidente da República Francesa e ao cortejo do enterro concorreram mais de cinqüenta carros, levando perto de uma centena de pessoas, entre as quais altas patentes do Exército e Marinha, diretores de repartições, homens da bolsa, literatos aclamados, revolucionários temidos e um capitão do Estado Maior, representando o presidente da República.

..............................

Seguiam-se-lhe as caleças, as vitórias e coupés, transportando a alta administração, civil e militar, as finanças, as letras e a revolução profissional, em tocante homenagem ao grande homem que era o cozinheiro do doutor Ricardo Loberant, diretor-proprietário d'O Globo.

Questão

11. Qual é o juízo crítico que se pode estabelecer do texto acima?

Adelermo, antes que tomássemos qualquer providência, entrou. Correu ao telefone para avisar o diretor. O doutor Loberant não estava; tinha saído às dez horas para o jornal. A polícia fora avisada e era preciso que ele o fosse também. Onde estaria? Veio o Rolim. Adelermo e ele cochicharam. O redator de plantão chamou-me.

— Caminha! Tu vais aí a um lagar e do que vires não dirás nunca nada a ninguém. Juras?

— Juro.

— Vais à casa da Rosalina, procurar o doutor Loberant... É preciso discrição, hein? O Rolim não pode ir, tem que ficar aqui, para o que der e vier... Vai! Mas não fales nada, nunca!

— Entra, custe o que custar, recomendou-me Adelermo ao sair, e deu-me dinheiro.

12. Qual a importância disso para a vida de Isaias? Justifique

O final...

Chegamos afinal a uma casa. Lembrei-me da minha casa paterna. Era o mesmo aspecto, baixa, caiada, uma parte de tijolos, outra de pau-a-pique; em redor, uma plantação de aipins e batata-doce. Deram-nos água, ofereceram-nos café e continuamos para o Galeão que estava próximo. Quando chegamos à praia, o dia tinha agonizado de todo. Fomos a uma venda, pedimos algumas latas de sardinha, pão e vinho. Fomos servidos em velhos pratos azuis com uns desenhos chineses e as facas tinham ainda aquele cabo de chifre de outros tempos. À vista deles, dos pratos velhos e daquelas facas, lembrei-me muito da minha casa, e da minha infância. Que tinha eu feito? Que emprego dera à minha inteligência e à minha atividade? Essas perguntas angustiavam-me.

Voltamos de bote para a ponta do Caju. Durante a viagem a angústia avolumou-se-me. As pás dos remos, caindo nas águas escuras, abriam largos sulcos luminosos de minúsculas estrelas agrupadas e todo o barco vogava envolvido naquele estrelejamento, deixando uma larga esteira fosforescente.

Lembrava-me da vida de minha mãe, da sua miséria, da sua pobreza, naquela casa tosca; e parecia-me também condenado a acabar assim e todos nós condenados a nunca a ultrapassar.

A italiana conversava com o remeiro sobre a pesca. Ela conhecia a vida e fazia perguntas nítidas

Saltamos do bonde, no Campo de Sant'Ana, eu e Leda tomamos um carro; o diretor continuou para o jornal.

Em vão ela me fazia falar. Respondia-lhe por comprazer. Lembrava-me... Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que a não pusera ao estudo e ao trabalho com a forca de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres... Sentia-me parasita, adulando o diretor para obter dinheiro.

Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha meninice eu não tinha dado as satisfações devidas.

A má vontade geral, a excomunhão dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império.

O carro atravessara o Largo da Lapa e o seu caminho foi interrompido por uma aglomeração de populares.

Da caleça, pude ver o que havia. Era uma mulher das muitas que povoam o largo e proximidades, que ia entre dois soldados. Recordei-me que já tinha visto aquela fisionomia. Esforcei-me por lembrar. A minha vida começou a desfilar e quando cheguei à casa da italiana, lembrei-me que era a amante do Deputado Castro.

Perguntei então a mim mesmo por que não casara aquela rapariga, por que não vivera dentro dos costumes tidos por bons. Não achei resposta, mas julguei-me, não sei por quê, um pouco culpado pela sua desgraça.

O carro chegou e eu saltei para ajudar Leda a apoiar-se. Paguei ao cocheiro e, na calçada, e a perguntou-me:

— Não entras?

— Não, obrigado.

Insistiu várias vezes, mas recusei. Vim vagamente a pé até ao Largo da Carioca, sem seguir um pensamento.

Vinha triste e com a inteligência funcionando para todos os fados. Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de forte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apaniguado de um outro qualquer. Tinha outros desgostos, mas esse era o principal. Por que o tinha sido? Um pouco devido aos outros e um pouco devido a mim. Encontrei Loberant:

— Então? perguntou maliciosamente.

— Deixei-a em casa.

— Pois se eu me tinha separado de vocês de propósito... Tolo! amos tomar cerveja...

Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos. As cogitações não me passaram... Loberant, sorrindo e olhando-mecom complacência, ainda repetiu:

— Tolo!

Todos os Santos, Rio de Janeiro — 1908